Em “Ideias do Canário”, Machado de Assis descreve o pensamento do pássaro que, vivendo em uma gaiola pendurada em uma loja de coisas antigas, pensa que o mundo é somente o que ele pode ver detrás das grades às quais seus movimentos estão limitados. A armadilha está no fato de que o passarinho acredita ser livre e, portanto, acredita que o que vê não é o horizonte limitado da sua gaiola, mas o universo completo — a própria realidade.
Jovens de classe média que protestavam na Praça Altamira, em Caracas, o local mais simbólico do antichavismo radical desde o golpe contra Hugo Chávez em 2002, eu pude perceber que eles acreditavam de coração que quase toda a Venezuela está contra o governo. O jovem da Praça Altamira obviamente não estava sozinho. Contou com a ajuda da imprensa para reforçar a imagem equivocada ou limitada da sua realidade. Principalmente da imprensa internacional.
Os correspondentes brasileiros da TV Globo e do jornal Folha de São Paulo faziam suas reportagens, quase todos os dias, na Praça Altamira: falando das mortes causadas pelos protestos, mostravam gases lacrimogêneos, detenção de jovens e até de alguns repórteres, pneus queimando, rostos cobertos, gritos, repressão, desespero.
Houve dias nos quais ao me conectar ao Twitter, um certo pânico me dominava. Então, eu saia de casa. Mas não para andar por qualquer rua, mas pelas ruas bairros mais distantes da Praça Altamira (23 de Enero, Catia), das zonas comerciais mais populares (Chacaito, Sabana Grande, Praça Venezuela) e do centro da cidade (Praça Bolívar, El Silencio, El Calvario). Um tipo de região que, diferentemente da Praça Altamira e de suas zona de influência, envolve mais de dois terços da cidade de Caracas, em termos de espaço e de população.
Enquanto a correspondente da Folha de São Paulo dizia em seu Twitter que o governo tinha censurado o Twitter, não lhe importava que eu, também do meu Twitter, em Caracas, lhe dizia que não era verdade, por mais que seja ridícula uma discussão no Twitter sobre a impossibilidade de usá-lo.
A imagem de um país em chamas foi, então, fabricada. E, claro havia chamas, principalmente em frente à gaiola do canário. Mas fora da loja de antiguidades todo um universo com outras realidades estava sendo ignorado.Para a imprensa e para o jovem de Altamira, só existia a manifestação. O menino, sua mãe e o carnaval não existiam.
Lorenzo Mendoza, presidente das empresas Polar, a mais importante do país, e Jorge Roig, presidente da Fedecámaras, a câmara venezuelana de comércio, organização que foi ator fundamental no golpe de 2002, pediram, no Palácio Presidencial de Miraflores, que o governo esqueça do passado e construa junto aos empresários o futuro. Do lado político, Henrique Capriles, candidato derrotado por ampla vantagem por Hugo Chávez em 2012 e por pouco por Nicolás Maduro em 2013, sabe que a sua própria existência política e a superação do chavismo dependem do isolamento dos setores mais reacionários da oposição. A controvérsia que houve foi por causa de denúncias de fraude eleitoral no Estado, a Flórida, que garantiu a vitória republicana.
O que as minorias intensas conseguiram é justamente a redução da legitimidade política do chavismo, por meio da construção de um discurso, aceito internacionalmente, que desenha o governo venezuelano como uma espécie de “ditadura”, ainda que esse movimento político tenha ganho quase vinte processos eleitorais com a presença de observadores internacionais. Nos protestos, na França, Grécia, Chile, Brasil. Em nenhum desses casos, todos lamentáveis, a imprensa internacional falou de “regimes autoritários”. Em geral, a imprensa costuma usar, inclusive, os dados oficiais de mortos, feridos e detidos fornecidos pela própria polícia. Na Venezuela, preferem fontes “alternativas”, como ONGs ou redes sociais.
Fica fácil para a imprensa internacional criar o estereotipo à distância, desenhando narrativas falsas ou parciais, porque ninguém fará o esforço de verificar a verdade. Muito pelo contrário: o público, em geral mais conservador, já espera ansioso o tipo de notícia que verá sobre o país e que fortalecerá seus próprios preconceitos: “regime”, “censura” etc. De qualquer maneira, o governo conseguiu sobreviver aos mais recentes desafios políticos e negociou não apenas com setores privados, mas também com o próprio líder político, agora moderado, Henrique Capriles.
Com estabilidade política em processo de restabelecimento, neutralizando os líderes radicais da oposição que defendem saídas inconstitucionais e talvez reconhecendo a legitimidade da oposição que segue o caminho da legalidade vigente, o governo poderá se ocupar das questões econômicas, que continuam sendo o motivo de preocupação e insatisfação não apenas de seus opositores, mas também de seus simpatizantes. Inflação e escassez afetam sobretudo as classes assalariadas e as que vivem na informalidade. Já é hora de ir além do mundo do passarinho.
Texto Original:
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/34502/venezuela+as+minorias+intensas.shtml?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter
Texto Original:
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/34502/venezuela+as+minorias+intensas.shtml?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter
No comments:
Post a Comment