O lugar do Brasil no sistema multilateral financeiro do século XXI: uma
análise dos fatores domésticos e estruturais e seus impactos
Rubens de S. Duarte1
Resumo:
No início do século XXI, uma série de fatores estruturais e domésticos criaram um ambiente
favorável para que o Brasil se projetasse internacionalmente na agenda financeira. Esse período foi marcado
por intensa produção intelectual e reflexão sobre o papel do país no mundo, que se traduziram na busca por
uma política externa autônoma e ativa. O Brasil, em articulação com outros países do Sul, apresentou
propostas para os principais foros multilaterais que atuam no setor financeiro (como o Fundo Monetário
Internacional, o G-20 e o Fórum de Estabilidade Financeira), assim como promoveu reformas institucionais
em seu processo de tomada de decisões em política externa. Na segunda década dos anos 2000, fatores
domésticos e estruturais abalaram o ambiente que proporcionara o citado período de grande ativismo na
política externa brasileira. Com isso, esse artigo busca identificar quais foram os ganhos no plano interno
e no multilateral conquistados nesse período, assim como indicar os principais empecilhos para que outros
pleitos brasileiros não tenham sido contemplados.
Palavras-chave: política externa brasileira; sistema financeiro; análise de política externa; G-20; FMI; FSF;
FSB.
Introdução
No início do século XXI, alguns atores que tinham menos voz no cenário mundial, passaram a ter
mais relevância – é o caso por exemplo, de Estados do Sul político, de instituições do setor privado e de
redes e movimentos sociais (MILANI et al., 2015; MAWDSLEY, 2012; HURRELL, 2007; NARLIKAR,
2010; DEGNBOL-M. e ENGBERG-P., 2003; LANCASTER, 2007). Essa mudança ocorreu com diferentes
intensidades em diversas agendas internacionais, como no regime de comércio, de cooperação para o
desenvolvimento, em mudanças climáticas e em Direitos Humanos. No regime financeiro não foi diferente.
1 Rubens de S. Duarte é doutorando em Política e Estudos Internacionais na University of Birmingham (Reino Unido), Mestre
em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ),
Bacharel em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio, Bacharel em Ciências Jurídicas pela UNIRIO e membro ativo do
Laboratório de Análise Política Mundial, antena Rio (Labmduno-Rio).
Todas as imagens neste artigo são de produção própria, feitas no âmbito do Ateliê de Cartografia do Labmundo, vinculado ao
IESP/UERJ, sob coordenação do Dr Carlos R. S. Milani.
Em um primeiro momento, os impactos da crise financeira de 2008 foram mais sentidos pelos países do
Norte, o que criou dúvidas sobre a credibilidade das normas internacionais existentes por eles criadas
(DOCTOR, 2015). Por sua vez, a emergência de países do Sul global (como o Brasil, a Índia, a África do
Sul, a Turquia e, sobretudo, a China) contribuiu para uma redistribuição de poder mundial não desprezível
(MILANI et al., 2015). Os pleitos históricos por reformas no sistema internacional que permitisse maior
pluralidade na elaboração das normas foram legitimados (BRANCO et al., 2012).
Somado ao relaxamento restrições sistêmicas sobre a atuação dos países emergentes, o cenário
político e econômico brasileiro no início do milênio também contribuiu positivamente para o aumento de
autonomia em sua política externa. A estabilização macroeconômica na década de 1990, assim como a
equalização da dívida externa, o aumento do preço das commodities e a vitória eleitoral de um partido de
esquerda no século XXI colaboraram para o aumento de recursos materiais, políticos e simbólicos do país,
que foram usados na implementação de uma política externa mais autônoma também na agenda financeira
(MARIGONI et al., 2014). A diplomacia presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva e sua relação com o
Chanceler Celso Amorim fortaleceram o momento de grande reflexão do papel do Brasil no mundo (LIMA
e DUARTE, 2013). A combinação dos ambientes internacional e doméstico favoráveis influenciou
diretamente a postura brasileira em foros internacionais (como no Fundo Monetário Internacional e no G-
20), bem como o jogo político de formulação da política externa. O governo brasileiro entendeu que era
momento de dar ênfase ao âmbito multilateral financeiro. A fim de viabilizar e fortalecer essa opção pelo
multilateralismo, o governo brasileiro buscou articular-se com outros países emergentes (LIMA, 2005;
SARAIVA, 2007) e fazer reformas institucionais no funcionamento dos órgãos (DUARTE, 2013).
Entretanto, a segunda década do milênio, foi acompanhada da reversão desse momento favorável,
tanto no cenário doméstico quanto no sistêmico. Essa nova realidade provocou uma mudança de estratégia
do governo brasileiro em sua política externa. Todavia, faz-se importante analisar quais foram os reais
ganhos (políticos, econômicos, institucionais e simbólicos) do Brasil, no século XXI, assim como debater
a estratégia da política externa brasileira diante do cenário adverso da segunda década do milênio. Este
artigo não se propõe a fazer um estudo detalhado da posição brasileira nos diversos foros internacionais
sobre temas financeiros, mas busca um debate mais amplo sobre a estratégia do governo brasileiro no
sistema financeiro e os fatores que a influenciam. A argumentação é no sentido de que o governo brasileiro
decidiu aproveitar o momento favorável do início do século e dar ênfase às ações no âmbito multilateral,
mas, diante da dificuldade de manter a estratégia escolhida, a política externa passou a favorecer outros
tabuleiros, sem prejuízo dos avanços que obteve no multilateralismo.
Para cumprir esse objetivo, este artigo é dividido em três partes, além da introdução: 1- a descrição
do cenário internacional no imediato pós-crise e o debate sobre a opção brasileira pelo multilateralismo; 2-
a apresentação dos fatores sistêmicos e domésticos que levam à retração dos incentivos ao multilateralismo
e a consequente mudança de ênfase; e 3- comentários finais. O artigo é baseado na revisão bibliográfica
sobre o tema, na análise de documentos oficiais, assim como em entrevistas com funcionários do Ministério
das Relações Exteriores, do Banco Central do Brasil e do Ministério da Fazenda (Anexo I). Todas as
entrevistas foram conduzidas pelo autor em duas ocasiões: 1- em 2012 e em 2013 no âmbito da pesquisa
de Mestrado;2
e 2- em maio de 2015, para a produção deste artigo. Todavia, alguns entrevistados solicitaram
anonimato.
O imediato pós-crise e a opção pelo multilateralismo
O foco dessa seção é a análise política das primeiras consequências e respostas dos países à crise
financeira de 2008, assim como dos fatores que motivaram a escolha do governo brasileiro pela ênfase no
âmbito multilateral. Entretanto, este artigo não se propõe a fazer um debate técnico sobre esse tema, o que
exigiria esforço que o espaço não permite, mas prioriza uma análise política desses fatores.
A crise financeira de 2008, diferentemente de outras anteriores, teve sua origem no global shadow
banking system, denominado mercado paralelo, em português. O mercado paralelo é formado por diversas
instituições financeiras (como bancos de investimento, seguradoras e outros agentes financeiros) que não
eram contemplados pelo acordo de Basiléia II, que representava as normas de supervisão bancária na época
(CORAZZA, 2005). Basileia II foi criado com base no princípio neoliberal da autorregulação, que defendia
que as instituições financeiras seriam os atores mais apropriados para monitorarem a si mesmos e as
operações financeiras, criando um sistema em que os atores financeiros eram seus próprios juízes
(CARVALHO e SANTOS, 2008).
As primeiras respostas dos governos para a crise foram no âmbito doméstico, no sentido de devolver
liquidez e confiança ao mercado, aquecendo a demanda e evitando a evasão fiscal (FARHI e CINTRA,
2009). Os governos de vários países lançaram pacotes de ajuda e, em caráter inédito, contemplaram agentes
do mercado paralelo. Entre diversas ações para evitar a evasão fiscal, uma das medidas que mais impactou
no cenário internacional foi o pacote doméstico estadunidense (mas com efeitos extraterritoriais) chamado
Hiring Incentives to Restore Employment Act. Apesar de importantes, as medidas unilaterais não seriam
suficientes para devolver liquidez e confiança para o sistema financeiro. As normas internacionais estavam
diante de uma crise de legitimidade (STUENKEL, 2013). A quebra do Lehman Brothers demonstrou a
insuficiência das normas internacionais para o setor financeiro para evitar a crise. Os países do Norte, que
tiveram participação significativa na elaboração dessas normas, eram os mais atingidos pelos efeitos da
2 Dissertação defendida em março de 2013 para a obtenção do título de Mestre em Ciência política, no Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), orientada pela Drª Maria Regina Soares de Lima
e intitulada Repolitizando a política externa financeira: uma análise da formulação da política externa brasileira para o setor
financeiro pós 2008.
crise. Os países emergentes, que historicamente demandavam a reforma das instituições financeiras, foram
menos atingidos em um primeiro momento. Diante desse cenário, os Estados avaliaram que era necessário
intensificar o debate sobre temas financeiros, dialogando com outros países do Sul (DOCTOR, 2015;
BRANCO et al., 2012).
Diante da crise de legitimidade dos países do Norte, do fortalecimento dos países emergentes e do
momento doméstico favorável após a estabilização macroeconômica e equalização da dívida externa, o
governo brasileiro avaliou que seria o momento oportuno para enfatizar sua ação no âmbito multilateral.
Havia o entendimento de que o Brasil, ao invés de contorná-las, deveria apostar na reforma das instituições
multilaterais existentes. A busca pela reforma do processo decisório nos foros internacionais, de modo a
trazer maior pluralidade e representatividade para as instituições, é uma bandeira antiga dos países do Sul,
estando presente, por exemplo, no G-77, no Movimento dos Não Alinhados, na proposta para uma Nova
Ordem Econômica Internacional e no Livro Azul do G-24 (MILANI e DUARTE, 2015; VIEIRA, 2012;
LIMA, 2005).
A opção de enfatizar o tabuleiro multilateral pode ser explicada por diversos fatores. Em primeiro
lugar, há, segundo a narrativa oficial do Itamaraty, o gosto brasileiro pelo multilateralismo (AMORIM,
2011). As negociações multilaterais têm o potencial de gerar maior impacto positivo no desenvolvimento
mundial e, particularmente, do Brasil, devido a diversidade das suas relações internacionais em termos
setoriais e geográficos (BRANCO et al., 2012). Se eficaz, a busca pelo governo brasileiro da reforma do
processo decisório pode colocar o Brasil na mesa de negociações sobre as normas internacionais. A
participação brasileira nesses foros, além de criar um canal formal para que o Brasil defenda seus interesses
nessas instituições internacionais, também gera capital simbólico. Ao aumentar a participação nesses foros,
além do ganho em seu poder de voto, há o prestígio de sentar ao lado das maiores potências mundiais e ser
reconhecido como um país responsável por eles (DOCTOR, 2015). Era, portanto, o momento para o Brasil
fortalecer a busca pela reforma das instituições multilaterais financeiras, a fim de reduzir a superrepresentação
dos países do Norte.
Diante da opção pelo multilateralismo, era necessário reformar as instituições domésticas, a fim de
viabilizar uma repolitização da política externa brasileira (DUARTE, 2013). Ao longo décadas de 1980 e
1990 a política externa para o setor financeiro encontrava fortes restrições sistêmicas. No cenário
internacional, a ideologia neoliberal ganhava força, com os planos de ajuste estrutural. No âmbito
doméstico, a crise da dívida e a alta inflação fizeram o governo brasileiro buscar auxílio financeiro
internacional. Nesse período, a política externa brasileira para o setor financeiro tinha como principal
função a negociação dos pacotes de compromisso internacional diante da necessidade brasileira de
financiamento e recuperação econômica. Na medida em que o país passava por tamanhas dificuldades,
havia pouco espaço e legitimidade para demandar maior participação do país nos foros internacionais. Com
isso, atores que tinham maior domínio dos termos técnicos e capacidade de negociar esses assuntos eram
privilegiados na formulação da política externa. A Secretaria de Assuntos Internacionais (SAIN) do
Ministério da Fazenda e o Departamento de Assuntos Internacionais (DERIN) do Banco Central ganharam
espaço na formulação da política externa, em detrimento do Itamaraty. Diante da oportunidade de
repolitizar a política externa brasileira no século XXI, o Ministério das Relações Exteriores voltou a ganhar
espaço em temas financeiros, para que ele incorporasse à postura brasileira uma dimensão política, que
fosse capaz de repensar o papel do Brasil nas instituições do referido regime. O Departamento de Assuntos
Financeiros e Serviços (DFIN) foi criado em 2010, por meio de uma ampliação de uma coordenação-geral
dentro do Itamaraty.3 Ainda que não exista clara divisão de funções ou uma instituição que promova o
diálogo entre os três órgãos públicos citados, o DFIN passou a ser o departamento do Itamaraty responsável
por formular a política externa brasileira para o setor financeiro, em conjunto com a SAIN e com o DERIN
(DUARTE, 2013).
A elevação do G-20 a um foro de cúpula, em 2008, foi recebido com entusiasmo pelo governo
brasileiro. Desde sua criação, em 1999, o Brasil faz parte do G-20, que foi pensado como um foro para que
ministros da fazenda e presidentes de banco central dialogassem sobre temas financeiros. Na declaração
final de Pittsburgh, em 2009, os países do G-20 determinaram que aquele grupo seria o principal foro de
discussões para assuntos de cooperação econômica. Com isso, não apenas o Brasil estaria presente no foro,
mas também estariam representados outros parceiros do Sul, como a China, a Rússia, a Índia e a África do
Sul (STUENKEL, 2013). Por meio do G-20, o Brasil, em articulação com outros países do Sul, poderia
pressionar pela reforma de outras instituições.
Um dos principais objetivos do Brasil e de seus parceiros era a reforma do sistema de quotas do
Fundo Monetário Internacional (FMI). No entender do Brasil, as reformas poder decisório do FMI ao longo
do tempo não acompanharam as mudanças no cenário econômico, político e social que ocorreram no pósSegunda
Guerra Mundial (imagem 1). Alguns países, principalmente os europeus, têm poder de voto que
não condiz com o peso no cenário internacional, enquanto que os países emergentes estão subrepresentados.
O Brasil e outros países emergentes aumentaram os aportes ao FMI e forcaram a negociação
de uma nova reforma sobre as cotas, que diminuísse o déficit de representação dos países do Sul.
3 De acordo com a organização institucional do Ministério das Relações Exteriores, os Departamentos estão em um nível
hierárquico superior às Coordenações-Gerais.
Durante a reunião do G-20 em Londres, em 2009, foi criado o Financial Stability Board (FSB), em
substituição ao Financial Stability Forum (FSF). O FSB foi criado para, em conjunto com o FMI, monitorar
o sistema financeiro internacional, assim como sugerir a criação de novos mecanismos para manter o bom
funcionamento dos mecanismos de supervisão. Todavia, a mudança mais significativa não foi em relação
à função do FSB, mas quanto a sua composição, que passava a incluir todos os países do G-20. Também a
partir de 2009, o Brasil passou a integrar com direito a voto o Comitê sobre Mercados no âmbito do Banco
de Compensações Internacionais e o Comitê sobre Sistema Financeiro Global, ambos atuando na
monitoração e supervisão do mercado financeiro.
O período imediato após a crise de 2008 representou um momento de perda de credibilidade das
normas financeiras internacionais, assim como de fortalecimento da legitimidade do Brasil devido a fatores
domésticos e sistêmicos. As respostas para a crise financeira ocorreram tanto a nível nacional e multilateral,
devido ao entendimento de que era preciso incluir novos atores nos debates sobre a agenda financeira, para
devolver confiança ao mercado. Para aproveitar o momento oportuno, o governo brasileiro decidiu dar
ênfase no tabuleiro multilateral. Esse período e a aposta brasileira no multilateralismo rendeu frutos: o
Brasil integrou diversos foros internacionais, incentivou debates sobre a reforma do poder decisório
(principalmente no FMI) e re-estruturou a burocracia estatal para a formulação da política externa brasileira.
A criação do DFIN foi fundamental no refortalecimento da dimensão política no discurso brasileiro no setor
financeiro internacional. A próxima seção debate o cenário internacional e doméstico da segunda década
do século XXI, assim como a resposta da política externa brasileira para esse novo cenário.
A reversão do cenário e a mudança de ênfase
A segunda década do século XXI apresentou mudança significativa no cenário internacional e no
âmbito doméstico brasileiro. Esses fatores enfraqueceram os debates sobre a reforma das instituições
internacionais, diminuindo a capacidade dos países do Sul, inclusive do Brasil, de influenciar nas decisões
internacionais. Esta seção debate os avanços conquistados no início do século XXI, assim como a mudança
de estratégia da política externa brasileira diante de um cenário com menos incentivos ao multilateralismo.
Marta Castello Branco (2013a) identifica seis principais fatores para que o G-20 não tenha atingido seus
objetivos iniciais e expectativas. Expandindo a análise para o sistema financeiro em geral é possível
identificar outros fatores adicionais que podem ser resumidos em cinco tópicos: 1- falta de consenso em
tópicos importantes e de longo-prazo; 2- postura conservadora dos países do Norte em abrir mão do seu
poder institucional estabelecido; 3- falta de poder coercitivo das instituições internacionais no setor
financeiro; 4- eventos internacionais em outras agendas que mudaram o jogo político; e 5- diferentes níveis
de crescimento e recuperação econômica.
Mesmo no período imediatamente pós crise, os debates sobre as medidas a serem tomadas no
multilateralismo esbarraram no conflito entre opiniões diferentes. No G-20, havia a posição liderada pela
Alemanha, favorável à austeridade, a representada pelos Estados Unidos, que defendia o crescimento com
moderados incentivos governamentais, e a dos países emergentes, com o crescimento por meio de um
pensamento não liberal (BRANCO, 2013a). Com isso, grande parte das medidas que foram levadas a diante
eram de curto-prazo. Algo semelhante ocorreu no FSB, em que somente avançaram os temas em que havia
certa harmonia de proposta diante do reconhecimento de que o sistema financeiro é global e interconectado
(FARHI, 2011). A crise financeira de 2008 demonstrou a necessidade evidente de aumentar as reservas
obrigatórias para os bancos universais, assim como monitorar e regular a ação do mercado paralelo.
Consequentemente, medidas nesse sentido foram aprovadas, ao contrário de projetos mais ambiciosos como
taxar operações de câmbio ou criar maior controle sobre os hedge funds.
Além da falta de consenso sobre temas relevantes, as reformas também esbarraram na postura
conservadora dos países do Norte. A demora do Congresso estadunidense em aprovar a reforma das quotas
do FMI, aprovada em 2010, pode ser considerada simbólica nesse sentido.4 O re-fortalecimento do G-7
também pode ser citado como exemplo dessa resistência dos países do Norte em tornar as discussões sobre
a agenda internacional mais plurais e participativas. Após um período no início do século XXI em que
alguns debates foram levados ao G-8 ampliado (com a participação de países emergentes na qualidade de
convidados) e da posterior elevação do G-20 a foro de cúpula (com a participação de países do Sul na
qualidade de membros efetivos), o G-7 representa a volta a um estágio menos plural.
O terceiro fator relevante para que as instituições internacionais não tenham aprofundado as
reformas é a natureza institucional. As instituições do setor financeiro não têm poder coercitivo (BRANCO,
2013a). Muitas decisões tomadas nos foros internacionais são recomendações ou acordo entre os membros,
4 O Congresso estadunidense não aprovou a reforma até o momento em que este artigo foi escrito, em 30 de maio de 2015.
com prazos longos para a adequação. Some-se a isso a informalidade do G-20. Diferentemente de outras
instituições, como o FMI, Banco Mundial e o FSB, o G-20 não é uma organização formal, não tem sede,
não tem tratado constitutivo e, consequentemente, não é uma pessoa jurídica de Direito Internacional. Os
temas a serem discutidos no G-20 variam de acordo com os interesses e empenho do país que ocupa a
presidência rotativa (VIANA e CINTRA, 2010).
O cenário político mundial também mudou significativamente devido a fatores externos da agenda
financeira, que interferiram nas relações entre países relevantes nas relações internacionais. A crise na Síria
afetou diretamente as discussões na cúpula do G-20 em St. Petersburg. Com o desconforto político causado
pelas divergências quanto à condução da questão síria, temas econômicos, como a crise na Zona do Euro,
ficaram em segundo plano. A reunião de 2013 se resumiu a tratar de temas como crescimento econômico
e evasão fiscal (BRANCO, 2013b). A interferência de assuntos de outras agendas nos foros financeiros
voltou a se repetir em 2014. A instabilidade na Ucrânia criou um conflito entre a Rússia e a Europa, esta
apoiada pelos Estados Unidos. A Austrália, que ocupava a presidência rotativa do G-20, ameaçou banir a
participação do presidente russo Vladmir Putin e, eventualmente, da Rússia.5 Com isso, os países
emergentes, que em alguns temas contam com a Rússia como aliada nos foros multilaterais, tiveram que se
mobilizar para contrapor essa proposta australiana, ao invés de focar na articulação de propostas no setor
financeiro.
Com o isolamento político da Rússia, os países emergentes perderam capital político dentro dos
foros financeiros. Somado a isso, o enfraquecimento dos países emergentes também foi causado por
motivos econômicos. Com a recuperação econômica, o G-20 perdeu protagonismo. Além disso, as
velocidades diferentes de recuperação econômica geram poucos incentivos para a disposição dos países em
cooperarem (BRANCO, 2013a). Algumas economias de países do Norte, como dos Estados Unidos e Reino
Unido voltaram ao patamar anterior ao antes da crise de 2008. Outros casos apresentam a situação oposta,
como é o da Grécia, ainda estão em circunstâncias críticas. O mesmo raciocínio pode ser aplicado no caso
dos países emergentes, que começaram a sentir com maior intensidade os efeitos da crise, sendo que alguns
menos (como é o caso da China e da Índia) e outros mais (como o Brasil). A lógica6
por trás desse argumento
é baseada na percepção de que os países, quando estão passando por dificuldades, tendem a buscar soluções
em conjunto. Todavia, quando a situação crítica é superada, a vontade de cooperar também diminui. A
economia brasileira, principalmente a partir de 2013, enfrenta dificuldades diante dos impactos da crise
mundial. Esse fator é agravado com a queda no preço das commodities, afetando o superávit comercial
5 SMYTH, Jamie (2014) “Australia threatens Russian president Vladimir Putin with G20 summit ban” in Financial Times.
Disponível em
acessado em
24/05/2015.
6 Argumento também presente em entrevistas feitas em maio de 2015 com diplomatas que trabalham com assuntos relacionados
ao G-20.
brasileiro, alcançado principalmente no final da primeira década do século XXI. Diante do cenário
econômico adverso, a Presidente Dilma Rousseff anunciou em 22 de maio de 2015 cortes no Orçamento,
que representam o maior corte nominal feito na história do governo brasileiro.
As restrições sistêmicas na segunda década do século XXI são mais rígidas do que as verificadas na
década anterior. Além disso, a situação da economia doméstica e o corte orçamentário também reduz a
capacidade de atuação autônoma do Brasil no exterior. Diante de cenários doméstico e internacional
diferentes, é necessário reavaliar as prioridades e estratégias, de acordo com o que é possível fazer com
recursos escassos. Isso não significa que a política externa deixou de ser ativa, mas somente o entendimento
de que o ambiente que incentivava a ênfase brasileira no cenário internacional não é o mesmo. A diferença
de perfil entre o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua sucessora em promover diplomacia presidencial
deve ser considerada. Todavia, é difícil quantificar quão significativo é esse fator, visto que as restrições
externas são significativamente diversas no período de cada governo. Deve-se levar em conta que os outros
países emergentes (como a China, a Índia e a África do Sul) também não vêm se destacando no cenário
multilateral, o que sugere que não foi somente no ambiente doméstico brasileiro em que houve mudanças.
Deve-se considerar que existiu no início do século XXI um momento propício para pressionar por reformas
no sistema decisório internacional, mas essa janela de oportunidade passou, assim como o período de forte
crescimento econômico nacional. Diante de cenários diferentes e de possibilidades reduzidas, é natural que
a estratégia adotada pelo governo brasileiro seja repensada.
Com menos incentivos no âmbito multilateral global, o governo brasileiro passa a dar ênfase a outros
tabuleiros, como a articulação inter-regional e negociações bilaterais. No âmbito inter-regional, deve se
destacar o relacionamento do Brasil com os demais países que formam o grupo BRICS. Os países que
integram os BRICS têm capacidades, características, trajetórias e interesses heterogêneos (como, por
exemplo, modelo econômico, organização política, matriz energética, composição da pauta de exportação,
crescimento econômico e poder militar), mas encontraram um ponto em comum na busca pela reforma do
poder decisório das instituições internacionais, de modo a conquistar maior protagonismo político
(MILANI et al., 2015).
As discussões sobre a criação de um banco de desenvolvimento dos BRICS, que já vinham sendo
discutidas, tomaram maior corpo na cúpula de Durban, em 2013 (ABDENUR e FOLLY, 2015). O Banco
de Desenvolvimento dos BRICS (BNB) foi apresentado pela diplomacia brasileira como um mecanismo
complementar às instituições de fomento existentes, como o Banco Mundial e o FMI.7 Apesar da narrativa
oficial, a criação do BNB demonstra clara insatisfação do grupo com as instituições existentes a ponto de
criaram novas instituições (MILANI et al., 2015). Quando os interesses dos atores estão contemplados pelas
7 Fonte: sítio web do Itamaraty. Disponível em acessado em 25/05/2015.
normas existentes, há pouco incentivo para que criem alternativas a elas. Os documentos assinados na VI
Cúpula de Chefes de Estado e de Governo do BRICS,8
podem conter sinais de que o BNB, apesar de seu
estágio inicial, foi criado com o intuito de formar instituições robustas. O documento constitutivo do BNB9
disciplina que o banco exercerá a função de fomento a projetos de infraestrutura e de desenvolvimento
sustentável entre os BRICS e em outros países por meio da cooperação Sul-Sul. Com isso, o BNB exercerá
uma função semelhante ao do Banco Mundial.
A criação do BNB foi bastante celebrada e ganhou notoriedade, mas não foi o único arranjo
importante para o setor financeiro na cúpula dos BRICS. Os países também deliberaram sobre o Arranjo
Contingente de Reservas (CRA), que é uma instituição para prestar auxílio monetário de curto prazo a
países com dificuldades em suas balanças de pagamentos.10 Se o BNB tem função semelhante ao do Banco
Mundial, o CRA, por sua vez, foi criado com propósitos análogos aos do FMI. Também merece atenção a
assinatura do Memorando de Entendimento sobre Cooperação entre Agências de Seguro de Crédito à
Exportação do BRICS.11 O memorando de entendimento não apenas prevê o diálogo e projetos conjuntos
das agências nacionais12 no âmbito de concessão de crédito para a exportação, mas também prevê a
concertação política em debates internacionais sobre o tema. Os documentos assinados na VI Cúpula dos
BRICS podem dar origem a uma densa rede de instituições financeiras controlada pelos BRICS. Ainda que
exista forte assimetria entre os países dos BRICS (e, portanto, diferentes níveis de influência nas decisões
dessas instituições), o fator a ser levado em conta é que o Brasil faz parte de um movimento para criar
alternativas ao sistema internacional existente trancamento da pauta de reformas.
Além do tabuleiro inter-regional, o governo brasileiro também passou a dar mais ênfase a
negociações bilaterais. O Itamaraty, por meio do DFIN, negocia a assinatura de Acordos de Cooperação e
Facilitação de Investimentos (ACFI). Os três primeiros acordos a serem assinados foram com
8 Ocorrida entre 14 e 16 julho de 2014 em Fortaleza e em Brasília.
9 Documento constitutivo disponível no sítio web do Itamaraty em
acessado em 25/05/2015.
10 Artigo 1° do documento constitutivo disponível no sítio web do Itamaraty em
acessado em 25/05/2015.
11 Memorando disponível no sítio web do Itamaraty em acessado
em 25/05/2015.
12 Assinaram o documento a Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias S.A; a OJSC Russian Agency for
Export Credit and Investment Insurance (EXIAR); a Export Credit Guarantee Corporation of India Limited (ECGC); a China
Export & Credit Insurance Corporation (SINOSURE); e a Export Credit Insurance Corporation of South Africa SOC Ltd (ECIC).
Moçambique,13 em 30 de março de 2015; com Angola,14 em 1° de abril de 2015; e com o México,15 em 26
de maio de 2015. Segundo entrevistados no DFIN, estão sendo negociados outros acordos semelhantes com
países da América Latina e da África,16 sendo que a expectativa é que seja assinado ao menos um total de
dez acordos até 2018. A partir de uma nota conceitual do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior em 2012 (e, portanto, já no governo da Presidente Dilma Rousseff), o modelo de ACFI
foi criado por meio de diálogos informais entre o Itamaraty, Ministério da Fazenda e do Banco Central,
com consultas ao setor privado (ONGs, redes e movimentos não foram consultadas). O debate sobre o
modelo do ACFI representa a retomada pelo governo brasileiro da ênfase em acordos de investimentos,
uma vez que nenhum dos 14 acordos Promoção e Proteção de Investimentos (APPIs) assinados pelo Brasil
foram aprovados pelo Congresso Nacional.17
Além da maior ênfase em negociações bilaterais, o modelo do ACFI representa um contraponto
normativo e simbólico ao modelo de investimento defendido pela OCDE (os citados APPIs). Segundo a
narrativa oficial brasileira, o modelo desenvolvido pelo governo Brasileiro reflete as reservas históricas
quanto a acordos que poderiam reduzir a capacidade do Brasil de legislar, ferindo a soberania. A crítica
brasileira a esse modelo de proteção a investimentos pode ser verificada, por exemplo, nas negociações da
Área de Livre Comércio das Américas (MILANI et al., 2015; AMÂNCIO, 2003). Segundo o discurso
oficial, o modelo de ACFI foi pensado de modo a não ferir a soberania e ser flexível suficiente, a fim de
adaptar-se de acordo com as particularidades do parceiro. Com isso, os acordos preveem cláusulas
normativas tradicionais (como cláusulas sobre tratamento nacional, sobre nação mais favorecida e sobre
compensação sobre expropriação de investimento), mas não contemplam a cláusulas de expropriação
indireta.18 Além disso, o modelo de ACFI prevê a criação de mecanismos intergovernamentais de diálogo,
para além de medidas arbitrais de solução de controvérsias, de modo a privilegiar o diálogo em detrimento
13 Notícia disponível no sítio web do Itamaraty em
acessado
em 25/05/2015.
14 Notícia disponível no sítio web do Itamaraty em
acessado em 25/05/2015.
15 Notícia disponível no sítio web do Itamaraty em
acessado em
01/06/2015.
16 O governo brasileiro concluiu as negociações sobre um novo acordo de investimentos com Malaui, que aguarda assinatura. O
Itamaraty ainda negocia com a África do Sul, a Argélia, o Chile, a Colômbia, o Marrocos, o Peru e a Tunísia.
17 Fonte: sítio web do MDIC. Disponível em
acessado em 25/05/2015.
18 Cláusulas de expropriação indireta são frequentemente usadas por empresas para processar o Estado, quando se sentem lesadas
diante de algum ato governamental que não seja a expropriação direta. Por exemplo, empresas que se sentem lesadas com
revogação de licenças para exercer sua função; revogação de concessões de exploração de determinado serviço; proibição de
importação de materiais considerados nocivos, mas que são insumos importantes para a determinada empresa; e novas
regulamentações ambientais que podem tornar a atividade das empresas menos lucrativa.
do litígio. Por fim, como o próprio nome do acordo revela, há uma dimensão forte de cooperação entre o
Brasil e os demais países. O ACFI busca identificar no diálogo com o país parceiro quais são os temas que
demandam maior investimento e criar condições propícias para incentivar investimentos o desenvolvimento
do parceiro.
Essa movimentação brasileira no âmbito inter-regional e bilateral comprova que o governo
brasileiro não está inerte no cenário internacional. Com a mudança do cenário doméstico e sistêmico e a
consequente escassez de capacidades para adotar uma política externa autônoma e proeminente, o governo
brasileiro concluiu que era necessário buscar alternativas ao âmbito multilateral. Com isso, enfatizou sua
participação na assinatura de acordos de facilitação de investimentos, assim como na criação de instituições
financeiras inter-regionais. Há, também, um caráter político e simbólico, em que o governo brasileiro envia
uma mensagem não escrita para os seus parceiros na cooperação Sul-Sul e, também, para os países do
Norte, demonstrando os princípios que o Brasil valoriza (como respeito à soberania, solidariedade e direito
ao desenvolvimento). Essas ações, além de um ponto político e simbólico ao criar novas normas e
instituições baseadas em princípios da cooperação Sul-Sul, também têm caráter econômico estratégico.
Esse arcabouço institucional garante recursos e segurança para a internacionalização do capital brasileiro,
dando suporte a empresas brasileiras para promoverem negócios internacionais.
É importante ressaltar que, apesar da reversão do cenário internacional e a consequente mudança de
estratégia do governo brasileiro, os ganhos obtidos na primeira década do século XXI não foram
desprezíveis nem revertidos. As instituições internacionais no setor financeiro continuam sendo
influenciadas pelas potências do Norte, assim como os países emergentes continuam sendo subrepresentados.
A recusa do congresso estadunidense em aprovar a revisão das quotas do FMI pode ser usada
como um exemplo disso. O refortalecimento do G-7 e o enfraquecimento do G-20 também denota que as
reformas nas instituições não atenderam às expectativas brasileiras. Todavia, houve avanços institucionais.
Ainda que as instituições estejam enfraquecidas e muitas negociações travadas, o Brasil fortaleceu seu
direito de estar presente e votar nos foros financeiros internacionais. É possível argumentar no sentido de
que sistema financeiro, apesar de continuar não sendo democrático, passou a ser mais plural (imagem 2).
As burocracias brasileiras, que não participavam entusiasticamente dos diálogos no setor financeiro, passam
a adquirir mais experiência em negociações internacionais, que pode ser usada em outras oportunidades.
Além dos avanços nas organizações multilaterais, a reforma da burocracia brasileira também criou ganhos,
que não foram revertidos na segunda década do século XXI. A criação do DFIN consolidou a dimensão
política na postura brasileira na agenda financeira, que estava enfraquecida devido à preferência por atores
que dominassem termos técnicos. Essa mudança institucional na burocracia brasileira permitiu que o
Itamaraty fosse um dos principais atores na criação e na negociação de acordos de cooperação e facilitação
de investimentos com outros países.
Considerações finais
A política externa brasileira para o setor financeiro no século XXI pode ser dividida em dois
momentos que refletiram estratégias brasileiras distintas. A primeira década foi caracterizada pelo bom
momento da economia nacional brasileira. Entre outros fatores que influenciaram o cenário doméstico
brasileiro, pode-se citar a estabilização macroeconômica, a equalização da dívida externa e a alta no preço
internacional das commodities. No plano internacional, os países do Sul emergiam economicamente e
politicamente, o que permitiu que voltassem à tona os debates sobre a necessidade de reforma do poder
decisório das instituições internacionais. Esse tradicional pleito dos países do Sul ganhou força diante da
queda de legitimidade das normas internacionais, causada pela crise financeira de 2008. Diante de um
cenário de aumento das capacidades nacionais e de relaxamento das restrições sistêmicas, o governo
Brasileiro avaliou que aquele era o momento propício para articular-se com outros países emergentes e
pressionar por reformas nas instituições internacionais. Essa decisão de enfatizar a ação no âmbito
multilateral foi conservada até o momento em que as mudanças nos cenários doméstico e sistêmico
diminuíram os incentivos para a manutenção da estratégia. Diante dos novos fatores e das possibilidades
do governo brasileiro, a política externa brasileira passou a enfatizar outros meios, como o inter-regional e
o bilateral.
Em vista dessa análise, devem ser desmitificados dois pontos que uma análise mais prematura pode
sugerir. Argumenta-se aqui contrariamente à existência de uma paralisia da política externa brasileira na
segunda década do século XXI. A conjuntura alterou e, consequentemente, a capacidade brasileira de
implementar uma política externa ativa e altiva foi reduzida. Somado a esse fato, a diplomacia presidencial
também passou a ser menos frequente, o que tira temas internacionais dos holofotes. Todavia, a política
externa continua sendo feita dentro do Itamaraty e de outras instituições da burocracia brasileira, como
pode ser verificado na elaboração e negociação do modelo de ACFI, bem como na participação em novas
instituições internacionais, como o BNB e o CRA. O segundo ponto que deve ser afastado é de que a opção
pela ênfase no plano multilateral não rendeu frutos. Pode-se argumentar no sentido de que esses ganhos
foram aquém das expectativas e dos interesses de alguns atores brasileiros, mas houve ganhos políticos,
institucionais e simbólicos, que não foram revertidos na segunda década do século XXI.
Essa variação de estratégias não significa que o Brasil perdeu interesse no multilateralismo, somente
revela que o governo brasileiro avaliou que seria necessário buscar seus objetivos por outros meios. O
próprio G-20 perdeu protagonismo e importância no sistema financeiro, principalmente diante da
recuperação econômica de alguns países do Norte e do surgimento de outros temas (Síria, Ucrânia, Ebola,
etc.). Apesar de importantes, essas outras agendas concorrem com temas econômicos nas discussões do G-
20. Se diversos temas passam a ter alta prioridade, consequentemente todos deixam de ser proeminentes.
Considerando o fortalecimento das restrições sistêmicas, deve-se questionar, portanto, qual é o peso do
governo Dilma Rousseff tem nessa mudança de estratégia. O Brasil não foi o único país emergente que atua
com menor entusiasmo nos foros multilaterais financeiros a partir da segunda década do século XXI. É
possível que mudanças dentro do governo também expliquem a variação da postura internacional desses
países, mas o ponto em comum é o fator sistêmico. A demanda pela reforma do processo decisório do
sistema financeiro internacional continua sendo feita, por meio de contrapontos políticos e simbólicos
presentes na criação de novas instituições internacionais e modelos de acordo.
Para futura reflexão, cabe discutir esses dois padrões de comportamento. Diante de ambientes
doméstico e sistêmicos favoráveis, o governo brasileiro retomou as bases da Política Externa Independente
e do Pragmatismo Responsável: busca de autonomia e de uma política externa ativa e altiva, por meio do
uso das capacidades nacionais e da cooperação com outros países do Sul. Depois desses períodos de grande
protagonismo, a política externa brasileira perdeu recursos e margem de manobra diante de ambientes
políticos e econômicos adversos. O segundo governo de Dilma Rousseff e um maior distanciamento
histórico serão importantes para analisar o período. Todavia, é possível argumentar no sentido de que a
mudança de tabuleiro ocorrida no tema financeiro na segunda década do século XXI não é uma ruptura
com os princípios basilares do período antecedente. Pelo contrário, a articulação com outros países do Sul
continua forte, assim como a criação de contrapontos simbólicos e políticos com as normas existentes
criadas pelos países do Norte. Todavia, recentes acordos com a OCDE também podem sugerir uma
retomada da ênfase na relação com a Europa e os EUA.
Este artigo, portanto, busca contribuir com a análise geral do papel do Brasil no sistema multilateral
financeiro. Não se buscou aqui uma análise técnica sobre a posição brasileira em cada foro internacional
na agenda financeira que faz parte, como o G-20, FMI, Banco Mundial, BNB e FSB. Entretanto, esse tema
pode ser objeto de futuras pesquisas, que dialogariam no campo da ação dos atores domésticos na
formulação da política externa para o setor financeiro (DUARTE, 2013).
Referências
ABDENUR, A. E.; FOLLY, M. (2015) "The New Development Bank and the Institutionalization of the
BRICS" in Debatendo o BRICS. Brasília, FUNAG.
AMORIM, Celso. (2011) Conversas com jovens diplomatas. São Paulo: Benvirá. 2011.
BRANCO, Marta Castello (2013a) “G20 discordinated in St. Petersburg” in Breves CINDES. No78,
outubro 2013.
__________ (2013b) “G20 discordinated in St. Petersburg” in Breves CINDES. No78, outubro 2013.
BRANCO, Marta Castello; VEIGA, Pedro da Motta; RIOS, Sandra Polónia (2012) “Economia e
governança global em 2020: implicações para o Brasil” in Breves CINDES. No 64, Janeiro de 2012
CARNEIRO, R. M. (2009) “O Brasil Frente à Crise Global” in Interesse Nacional, v. 5, p. 20-30, 2009
__________ (2011) “Financial governance in Brazil 1998-2010: an overview” in Revista de Economia
Política, v. 31, p. 863-873.
CARNEIRO, R. M.; ROSSI, P.; SANTOS MELLO, G.; VINICIUS CHILIATTO-LEITE, M. (2015) “The
Fourth Dimension: Derivatives and Financial Dominance” in The Review of Radical Political
Economics, v. 47, p. 1-22, 2015.
CARVALHO, Dermeval Bicalho; SANTOS, Gustavo Martins dos (2008). Os Acordos de Basiléia – um
roteiro para implementação nas instituições financeiras. Disponível em
http://www.febraban.org.br/LerArquivo.asp?Tabela=Home_Arquivos&codigo=id_arquivo&campo1
=arquivo&campo2=QtdeAcessos&id_codigo=196&campo3=arquivos/, capturado em 06/09/2012.
DEGNBOL-MARTINUSSEN, John e ENGBERG-PEDERSEN, Poul. (2003), AID Understanding
International Development Cooperation. London/New York: Zed Books.
DOCTOR, Mahrukh (2015) “Brazil's Role in Institutions of Global Economic Governance: The WTO and
G20” in Global Society.
DUARTE, Rubens de S. (2011), “Conceitos inclusivos e reflexões políticas quanto à classificação dos
países emergentes.” In Anais do IV Seminário de Ciência Política: Teoria e Metodologia em Debate.
UFRGS, Porto Alegre.
__________ (2013) Repolitizando a política externa financeira: uma análise da formulação da política
externa brasileira para o setor financeiro pós 2008 dissertação apresentada para a obtenção de título
de Mestre em Ciência Política, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), orientado pela Drª Maria Regina Soares de Lima. Disponível em
http://labmundo.org/2014/wp-content/uploads/2014/04/DUARTE_diss_2013.pdf
FARHI, Maryse (2011). “Crise financeira e reformas da supervisão e da regulação”. In Texto para
discussão, nº 1581, fevereiro, 2011. Disponível em
http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/tds/TD_1581_WEB.pdf, capturado em 06/09/2012.
FARHI, Maryse; CINTRA, Marcos A. M. (2009). “A arquitetura do sistema financeiro internacional
contemporâneo”. In Revista de economia política, vol 29, nº 3 (115), pp. 274-294, julho-setembro,
2009.
HURRELL, Andrew (2007). On global order: power values, and the constitution of international society.
Oxford: Oxford University Press, 2007.
LANCASTER, Carol (2007) Foreign Aid: diplomacy, development, domestic politics. Chicago: The
University of Chicago Press.
LIMA, Maria Regina Soares de (2005). “A política externa brasileira e os desafios da cooperação Sul-Sul”.
In Revista Brasileira de Política Internacional, nº 48, Ibri, Brasília, pp. 24-59, 2005.
MARINGONI, Gilberto; ROMANO, Giorgio; BERRON, Gonzalo (orgs.). 2003-2013 Uma Nova Política
Externa. Tubarão: Editora Copiart, 2014.
MILANI, Carlos R. S.; ECHART, Enara; DUARTE, Rubens de S.; KLEIN, Magno (2015) Atlas da política
externa brasileira. Rio de Janeiro: EdUerj; Buenos Aires: CLACSO. Access
http://www.clacso.org.ar/libreria-latinoamericana/contador/sumar_pdf.php?id_libro=927
MAWDSLEY, Emma (2012) From recipients to donors: Emerging powers and the changing development
landscape. London: Zed Books.
NARLIKAR, Amrita. (2010) New Powers: How to Become One and How to Manage Them. New York:
Columbia, 2010
OLIVEIRA, Amâncio Jorge de (2013) “O governo do PT e a Alca: política externa e pragmatismo” in
Estud. av. [online]. 2003, vol.17, n.48, pp. 311-329.
SARAIVA, M. G. (2007). “As estratégias de cooperação Sul-Sul nos marcos da política externa brasileira
de 1993 a 2007” in Revista Brasileira de Política Internacional, nº 50, Ibri, Brasília, pp. 42-59.
STUENKEL, Oliver (2013) “The financial crisis, contested legitimacy, and the genesis of intra-BRICS
cooperation” in Global governance, no 19, pp.611-630
VIANA, André Rego; CINTRA, M. A. M. (2010) “G20: os desafios da coordenação global e da
rerregulação financeira” in Boletim de Economia e Política Internacional, v. 01, p. 15-19, 2010.
VIEIRA, Marco (2012) “Rising States and Distributive Justice: Reforming International Order in the
Twenty-First Century” in Global Society 26:3, 311-329.