Por Jairo Saddi
Em meio a tantas notícias internas ruins, convém ao
observador mais atento olhar um pouco para o que se passa no mundo,
especificamente para a China. A China representa hoje cerca de 16% do produto
mundial e é o segundo maior parceiro comercial do Brasil. Corretamente,
parafraseando Metternich, quando a China espirrar, o Brasil certamente ficará
(mais) gripado.
E o espirro veio, como sói acontecer, das bolsas. O índice
Xangai caiu cerca de 8,5% num único dia (24 de agosto, "a segunda-feira
negra") derrubando o preço das commodities e assustando o mercado. No
entanto, há outras causas que devem ser apontadas. No início de agosto, a China
ordenou uma desvalorização inesperada do yuan, e, consensualmente, espera-se um
menor e menos vigoroso crescimento da economia.
Além disto, um aperto monetário do Federal Reserve deve
ocorrer em setembro, com o aumento de juros - depois de quase uma década,
redesenhando o mapa de liquidez global. A redução do fluxo de capitais tanto
para a China (quanto para o Brasil) causou um aumento na taxa de câmbio, uma
alta nas obrigações denominadas em moeda estrangeira, com uma consequente maior
preocupação no sistema bancário chinês.
O sistema bancário chinês é único. Maiores instituições não
são públicas ou privadas, mas braços do Tesouro
O sistema bancário chinês é único no planeta. Primeiro, não
é exagerado afirmar que as maiores instituições financeiras chinesas não são
bancos públicos ou privados no sentido do termo, mas braços do Tesouro, já que
suas relações com o Estado são estreitas. Distantes da livre competição, os
bancos chineses (e não os bancos estrangeiros), até agora ao menos, eram
extremamente rentáveis, amealhando cerca de 3% do PIB chinês. Parte do jogo,
contudo, além de créditos ao consumidor, são os créditos concedidos às empresas
públicas; o funding vem do Estado e há limitação de taxas de juros aos
tomadores.
Bancos como o Industrial and Commercial Bank of China
(ICBC), o China Construction Bank (CCB), o Bank of China (BOC) e o Agricultural
Bank of China (ABC) estão na lista dos maiores bancos do mundo. Para se ter uma
ideia da grandeza de tais instituições, só na China o ICBC tem mais de 400 mil
empregados e cerca de 14 mil agências.
No entanto, há um receio justificado do risco de crédito que
tais instituições gerenciam. Ainda que as estatísticas chinesas sejam sempre
suspeitas de serem torturadas, estima-se que a inadimplência bancária já beire
os 15% do sistema e que um panorama semelhante ao de 1990 possa ocorrer: um
generalizado socorro com o dinheiro do contribuinte ao sistema financeiro
chinês para evitar uma quebradeira geral.
Ademais do risco dos bancos, há um sistema bancário paralelo
(shadow banks) que alguns consideram pouco mais que esquemas piramidais com
extraordinárias chances de derreterem - e aí sem apoio estatal, já que pouco
regulados e fiscalizados, provocarão impactos reais e relevantes na sociedade
chinesa e na sua economia. E para piorar a situação, parte da bolha da bolsa
chinesa é financiada por esses esquemas, consequentemente, uma queda abrupta do
preço dos ativos não permitirá o pagamento dos empréstimos contraídos como
margem.
O crescimento da classe média chinesa e as iniciativas
empreendedoras de parte da população urbana incentivaram o aumento da atividade
bancária, fatos que, aliados às práticas pouco competitivas de juros, fizeram
crescer os bancos e seus serviços. Agora, a desalavancagem é igualmente
poderosa. Muitos consumidores interromperam seu ciclo de consumo e muitas
empresas individuais não estão conseguindo sobreviver.
Os efeitos no sistema financeiro, se ainda não inteiramente
conhecidos, serão sentidos, já que alguns estimam que essa carteira represente
quase 30% do total dos ativos dos bancos. Finalmente, gigantes da internet,
como Alibaba e Tencent, iniciaram movimentos frenéticos em serviços financeiros
em meios de pagamento. No caso do Alibaba, o Yu'E Bao que transfere saldos
remanescentes em conta corrente em fundos de investimento (algo como uma conta
remunerada) já está na casa dos bilhões, ainda que haja pouca (ou quase
inexista) regulação.
É claro que a reforma financeira global patrocinada pelo
FSB, do qual a China é signatária, com novos mecanismos para resolução bancária
(G-SIBs, TLAC, "bail-in", etc), pode ajudar a aplainar o árido deserto,
mas o mesmo acordo regulatório global, com o advento de Basileia III, pode
demandar capital na casa dos bilhões apenas para manter os índices de
exigibilidades atuais.
Assim, razões de preocupação há de sobra. Muitos acreditam
que o início da turbulência chinesa é apenas um resfriado, enquanto outros não
hesitam em afirmar que se trata de uma forte gripe, que poderá se transformar
numa pneumonia, parecida com a crise asiática de 1997. Talvez isto seja
exagerado, e é sempre bom não disseminar o pânico, mas não resta dúvidas de que
a bonança dos ventos chineses para os mercados emergentes acabou.
É evidente que a China ainda poderá crescer 5% a 7% ao ano -
o que convenhamos, não é pouco - mas até para manter esses níveis atuais, o
sistema financeiro chinês precisará de mais disciplina de mercado e de
políticas públicas mais consistentes e transparentes.
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