Friday, May 2, 2014

Vulgaridade Cordial




A festa da cadela não custou nem 4 salários mínimos, segundo a Socialite.

A  vulgaridade é uma propriedade do mundo moderno. Mas há uma vulgaridade que hoje é reserva  especial das elites nacionais.  Os brasileiros já se definiram como homens (e mulheres) cordiais. O país inteiro, aliás, era cordial: um sistema social de favores, de protegidos e de amigos do peito.

Modernizou-se e segue nessa direção -o que significa, em princípio, que evolui para um sistema no qual  os direitos de cada um não dependem de ele estar ou  não no coração dos amigos.Essa modernização aos trancos e barrancos deixa  nossas elites (como se costuma dizer) divididas entre  resquícios da antiga cordialidade e erupções de modernidade.

Para nossos antepassados próximos, até o século 17, "vulgar" significava comum, banal, próprio à massa do povo-sem a conotação de torpe ou abjeto. Para eles,  dizer que o povo era vulgar significava apenas um pleonasmo, algo como afirmar que o povo é popular. Não havia,  portanto, grande necessidade de recorrer a considerações estéticas para separar o povo das elites.

Na modernidade a divisão social pela ostentação de riqueza e elegância serve para produzir uma  mobilização produtiva da sociedade a partir de uma inveja generalizada. Esse plano pressupõe uma rápida expansão das classes médias, para que todos (ou quase)  possam invejar com alguma chance. Segundo o economista americano Thornstein Veblen, a riqueza, para  desenvolver sua função de divisor social, deve ser ostentada. A elegância não escapa a essa necessidade: ela  também deve ser conspícua .Assim a vulgaridade é apontada, por exemplo, na prepotência de uma riqueza que quer se impor sem concessões à  elegância (as elites da Alemanha entre as duas guerras,  nos quadros de Grosz). Ou, então, na corrupção da própria elegância, vendida como uma receita de bolo. Nesse caso (por exemplo, na Itália do milagre ou no Brasil  de hoje), assiste-se a uma acelerada codificação da elegância.

Tendo a pensar que essa ostentação invasiva de riquezas e  elegâncias é a regra da modernidade -até que inventemos outras divisões sociais, torcendo para que não sejam piores. Essa é, em suma, a vulgaridade banal.

No Brasil, a ostentação de riqueza e elegância tem um caráter de vulgaridade especial.  A peculiaridade aqui é o excesso de distância social  -o qual, por sua vez, é efeito de uma falsa modernização que não endossa a mobilidade social. A ostentação se dirige primordialmente ao povo, que não tem nenhuma condição de competir. A elite brasileira inventa assim uma forma original de vulgaridade, bem acima da vulgaridade banal: a  ostentação sem modernidade. 

Isso ficou evidente com a reportagem do fantástico sobre a socialite Vera Loyola organizou para o aniversário de sua cadela Pepezinha.A ostentação não  era feita para estimular inveja e impressionar os vizinhos na pirâmide social. A mensagem era endereçada  ao povo.

No dia seguinte a reportagem da festa dos cãezinhos Paulo César um ladrão de bancos tomou reféns numa agência bancária no interior de São Paulo.No decorrer das negociações, explicou o motivo de seu gesto: Segundo ele era intolerável, disse, que alguém fizesse festa de aniversário e desse  presente para cachorro quando ele não tinha nem sequer como alimentar satisfatoriamente o seu filho.

Em  suma, sentia-se tratado pior do que cachorro, com toda  a razão.  Só que, assim dizendo, pedia para ele mesmo e para os seus o tratamento que a emergente reserva a sua cadela. Ora, a Paulo César só sobra reclamar para voltar a integrar o espaço no qual a cordialidade do dono se exerce  -querer o lugar de Pepezinha.

Ele não se contenta em roubar o necessário para sustentar a si e a sua família, não se  contenta com uma transação abstrata, ele acaba -embora, ao que parece, sem premeditação- tomando reféns. Em suma, ele lida com o corpo de suas vítimas.  Entre a emergente e o excluído, a ostentação produziu  o contrário de uma relação abstrata: um "cordial" corpo-a-corpo, com um cachorro interposto. Vera, ostentando, coloca coleirinha, e Paulo César toma reféns.

Explica-se assim um dos traços enigmáticos da criminalidade brasileira: seu excesso de violência, que parece  desnecessário ao simples furto -inútil, se o propósito  fosse só a transferência de fundos. Cordialmente, um e outro seguem se respondendo  -um com "ostentando eu te esmago", e outro com "eu  te mato quando posso".

Em nossos trópicos, a ostentação de riqueza e elegância, separada de sua função  social moderna, se torna assim mais do que vulgar: obscena. Contudo, a cordialidade é também a invenção de uma  maneira gostosa de viver e se relacionar, mas, quando a elite se moderniza e começa a dominar, esmagando pela ostentação, a significação dessa  cordialidade gostosa desaparece -pois, de fato, ninguém mais está no coração dessa elite. Ela é arcaica demais para reconhecer que suas vítimas são sujeitos de  direito e moderna demais para proteger e favorecer  (prefere ostentar). Sua aparente cordialidade gostosa é, assim, vazia:  uma fábrica de eufemismos coletivos que ocultam a  violência da divisão social e nos induzem a crer na existência de uma grande família nacional.

Somos todos "amigões" ("amigão, cuida do carro para a gente"), todos "irmãos" ("corta este coco para nós,  irmão") e "tios" para todas as crianças, sobretudo se forem de rua. O papo cordial e paternalista mente ao sugerir que  ainda valeriam os compromissos afetivos do passado. O  que sobra dessa cordialidade das elites torna-se intoleravelmente vulgar por ser uma descarada gozação.



Resumo de Do homem cordial ao homem vulgar  FSP out/1999 por Contardo Calligaris




5 comments:

  1. Não posso julgar o fetichismo em torno da festinha de aniversário para uma cadelinha. Mas chamar a imprensa nacional para ostentar sua riqueza em horário nobre é brincar de televisão de cachorro e fazer isso naquele brasil de 1999 é uma gozação sádica.

    Ostentar no modelo de mobilidade social que lembra mais a sociedade de castas indiana do que o capitalismo individualista americano é uma forma de violência passiva.

    O problema não está na ostentação, mas sim para qual público ela é direcionada. As pessoas tem o direito de consumir ir ao shopping e sentarem no colo do papai noel. Mas no fundo no fundo quando estou comendo meu sanduíche premium de 30 reais no Marvin Burguer aqui na Asa Sul aí vem um maltrapilho entupido de crack andando como um Morto-Vivo e me pede dinheiro, não consigo disfarçar minha nausea...

    Os economistas por meio da ideologia materialista subverteram o conceito de felicidade e hoje criam modelos econômicos que buscam legitimar a filosofia reinante da possibilidade de crescimento econômico infinito, como se não existissem esgotamentos materiais e espirituais. A economia não é mais a ciência dos recursos escassos, mas sim a da ilusão da desenfreada abundância.

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  2. O papo cordial e paternalista mente ao sugerir que ainda valeriam os compromissos afetivos do passado. O que sobra dessa cordialidade das elites torna-se intoleravelmente vulgar por ser uma descarada gozação.

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  3. uando estava na Turquia e na India refleti a respeito da natureza da violência nesses locais e no Brasil. Nesses dois países existe desigualdade e pobreza na índia é tão repugnante quanto no mar de favelas que fazem o entorno das grandes cidades brasileiras. O que me chamava atenção eh que na índia e no interior da Turquia a pobreza não era tão violenta apesar de repugnante.

    Nesses lugares a violência é muito maior o risco de atentado terrorista do que por violência banal como no Brasil. Isso me fez refletir bastante sobre o que motiva a pessoa a praticar violência e como os mecanismos ideológicos operam. Violencia é o desumanismo banalizado. Para a pessoa estar disposta a fazer um sequestro relâmpago ou matar alguém ela precisa de um código ideológico que permita ela a fazer isso.

    No Brasil é isso somos ideologicamente iguais mas somos diferentes na pratica. A minha cordialidade transforma o faxineiro do banco é meu amigão mas o abismo material que me separa dele é tão grande quando o de um alemão se separa de turco na Turquia. Não existe ideologia que mascare a desigualdade num sistema que se diz MERITOCRATICO mas na verdade todo mundo parte de ponto de largada diferente...

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  4. Verdade....A CF88 é cordial assim como o cinismo da elite tupiniquim. Todo mundo sabe que temos uma polícia EXTREMAMENTE violenta com aqueles que não podem reivindicar o “Sabe com quem está falando?”, então de que adianta ter uma CF generosa em que os agentes que exercem a violência do estado não tem respeito pelos pobres. É clichê mas o mané do Renato Russo tinha razão: ninguém respeita a constituição,mas todos acreditam no futuro da nação....

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  5. Iluminismo é um evento passado que tornou-se alegoria histórica. Sem dúvida falar em modernidade liquida é mais apropriado eu apenas fiz uma analogia com o evento que liquefez o tempo e promoveu a transição da era da escuridão para a era das luzes. Imagino que o iluminismo não é só um processo de evolução intelectual em que a razão triunfa perante a deus e possibilita a filosofia se emancipar de deus por exemplo, o que não quer dizer que deus esteja morto ou não exista....Acho que o Brasil investe muito pouco em educação e acho a civilização tupiniquim encaminha para um processo de adoecimento espiritual é muito triste ver o Brasil profundo e belo entrando aos trancos e barrancos na modernidade. Uma civilização tropical cujo deus foi sacrificado em terras distantes, cujos trópicos nos brindam com tanta energia por um sol gostoso que banha nossas terras diariamente e nos abunda com recursos naturais que possibilitam uma existência harmônica entre os povos e a natureza. Mas não, temos que nos desenvolver e ser uma potencia pois temos uma elite de mentalidade aristocrática para sustentar, uma burocracia, um cartel de bancos e um cartel de commodities. O custo de ter ignorado a sabedoria e a consciência dos oprimidos no nosso processo histórico vai ser o perecimento espiritual. Por isso quero ir pro campo viver em harmonia com o que esse país tem de bom pra me oferecer. Onde posso viver a modernidade líquida no ritmo dos trópicos...Não sei como fazer isso mas é pra onde meu coração me guia....Essa civilização está doente e me adoece...

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