O suicídio sempre foi tratado somente como um fenômeno
social.
Ao invés disso, aqui se trata, para começar, da relação
entre o
pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este se
prepara
no silêncio do coração, da mesma forma que uma grande obra.
O
próprio homem o ignora. Uma tarde ele dá um tiro ou um
mergulho.
De um administrador de imóveis que tinha se matado, me
disseram
um dia que ele perdera a filha há cinco anos, que ele mudara
muito
com isso e que essa história “o havia minado”. Não se pode
desejar
palavra mais exata. Começar a pensar é começar a ser minado.
A
sociedade não tem muito a ver com esses começos. O verme se
acha no coração do homem. É ali que é preciso procurá-lo. É
preciso seguir e compreender esse jogo mortal que arrasta a
lucidez
em face da existência à evasão para fora da luz.
Matar-se é de certo modo, como
no melodrama, confessar. Confessar que se foi ultrapassado
pela
vida ou que não se tem como compreendê-la. Mas não nos
deixemos levar tanto por essas analogias e voltemos à
linguagem
corrente. É somente confessar que isso “não vale a pena”.
Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o
ator e seu cenário, é que é propriamente o sentimento da
absurdidade. Como já passou pela cabeça de todos os homens
sãos o seu próprio suicídio, se poderá reconhecer, sem
outras
explicações, que há uma ligação direta entre este sentimento
e a
atração pelo nada.
No apego de um homem à vida
há alguma coisa de mais forte que todas as misérias do
mundo. O
julgamento do corpo vale tanto quanto o do espírito e o
corpo recua
ante o aniquilamento
A escapada mortal que constitui o terceiro tema
deste ensaio é a esperança. A esperança de uma outra vida
que é
preciso "merecer” ou a trapaça dos que vivem não para a
própria
vida mas para alguma grande idéia que a ultrapassa ou a
sublima,
lhe dá um sentido e a atraiçoa. O espírito pode então
analisar
as imagens dessa dança ao mesmo tempo elementar e sutil,
ilustrando-as e revivendo-as ele próprio antecipadamente.
Como as grandes obras, os sentimentos profundos sempre
significam mais do que têm consciência de dizer. A
constância de
um movimento ou repulsão dentro da alma se reconhece em
hábitos de fazer ou de pensar e se persegue em conseqüências
que a própria alma ignora. Os grandes sentimentos trazem
junto
com eles seu universo, esplêndido ou miserável. Com sua
paixão,
aclaram um mundo exclusivo onde reencontram seu próprio
clima.
Há um universo do ciúme, da ambição, do egoísmo ou da
generosidade. Um universo, isto é, uma metafísica e um
estado de
espírito. O que é verdadeiro para sentimentos já
especializados o
será mais ainda para emoções, no fundo, a um tempo tão
indeterminadas, tão confusas e tão "certas”, tão
distantes e tão
"presentes" quanto aquelas que o belo nos desperta
ou que o
absurdo nos suscita.
Albert Camus