Wednesday, December 28, 2016

'A Tolice da Inteligência Brasileira', de Jessé Souza

Todos os dias, indivíduos normalmente inteligentes e classes sociais inteiras são feitos de tolos para que a reprodução de privilégios injustos seja eternizada na sociedade. Para enxergar com clareza nosso real lugar no mundo, é necessário compreender como a elite intelectual submissa à elite do dinheiro construiu uma imagem distorcida do Brasil para disfarçar privilégios injustos.

Em "A Tolice da Inteligência Brasileira", o sociólogo Jessé Souza apresenta uma história das ideias dominantes do Brasil moderno e de sua institucionalização.

Com uma abordagem teórica e histórica, o livro traz um caminho para devolver ao brasileiro a possibilidade de entender as reais contradições da sociedade.
No prefácio do livro, Jessé Souza ressalta que a soma das rendas de capital no Brasil é monopolizada em grande parte pelo 1% mais rico da população. O trabalho dos 99% restantes é transferido em grande medida para os bolsos do 1% mais rico.
"Os endinheirados e poderosos têm que ser inteligentes o bastante para criar uma 'ciência para seus interesses'", diz.
O economicismo como "cegueira" da dimensão simbólica do capitalismo
Economicismo é a crença explícita ou implícita de que o comportamento humano em sociedade é explicado unicamente por estímulos econômicos. Mas não são economicistas apenas os economistas ou cientistas sociais que compartilham a mesma visão de mundo. Nosso senso comum compartilhado também é economicista, o que faz com que, quando se fala em "níveis de renda" como correspondendo a "classes sociais", ninguém ache isso absurdo ou ridículo. As pessoas levam a sério, mostrando que o economicismo, superficial, frágil e pobre, enquanto visão científica da sociedade, é uma espécie de "visão oficial do mundo", seja para o senso comum compartilhado por todos, seja para as "ciências da ordem", que se utilizam dos pressupostos do senso comum para construir suas categorias e hipóteses.
Existem, no entanto, importantes gradações de complexidade entre as diversas formas de economicismo. Há toda uma tradição alternativa e, no geral, uma tradição bem mais crítica e sofisticada que a tradição dominante culturalista/conservadora que contestamos na primeira parte deste livro. Essa tradição entre nós começa talvez com Caio Prado Júnior e sua ênfase em localizar, no seu clássico publicado em 1942, Formação do Brasil contemporâneo, a colonização brasileira no horizonte da expansão do capitalismo comercial europeu. Nos anos 1950 e 1960 a influência da obra de Raúl Prebisch e da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), muito especialmente na obra de Celso Furtado, teve extraordinária ascendência sobre a vida intelectual e política do Brasil.
Em uma época em que as relações de subordinação e dependência econômica no capitalismo internacional pareciam possíveis de ser superadas a partir de uma direção política adequada, o tema do estatuto da subordinação econômica, ou seja, "como" a subordinação econômica brasileira era produzida e reproduzida, tornou-se o aspecto central do debate. Na impossibilidade prática de discutir todos os autores importantes dessa tradição, decidi tomar Francisco de Oliveira e Florestan Fernandes, este último um caso cuja singularidade ainda teremos ocasião de discutir em detalhes, como os grandes autores de uma tradição influenciada pelo marxismo e que avança efetivamente na compreensão da sociedade brasileira e de suas contradições reais.
Esse é muito especialmente o caso de Florestan Fernandes, já que Fernandes, para mim, é o primeiro pensador brasileiro que avança na questão de refletir sobre a "reprodução simbólica" do capitalismo periférico. E como, também para mim, esta reconstrução é o aspecto principal de uma sociologia crítica do Brasil contemporâneo, dado que o "trabalho da dominação social" que esconde privilégios só pode ser percebido pela reconstrução de uma reprodução simbólica muito peculiar ao capitalismo, Florestan é meu "interlocutor privilegiado". Não por acaso, meu livro A construção social da subcidadania é um diálogo com o A revolução burguesa, e nosso trabalho coletivo, A ralé brasileira: quem é e como vive, é um diálogo com seu A integração do negro na sociedade de classes.
Mas por enquanto comecemos o debate com Francisco de Oliveira. Seu livro Crítica à razão dualista é um acerto de contas com a tradição cepalina anterior. Parece-me também o ponto alto da tradição economicista entre nós - no caso de viés marxista -, levando ao máximo suas possibilidades explicativas. Por essa razão, serve também, em contrapartida, talvez como nenhuma outra produção teórica nacional sobre o tema, para mostrar os limites do economicismo marxista. Esse importante clássico de 1972 foi realizado como uma resposta à então recente expansão do capitalismo brasileiro acompanhada de um modelo de consumo restrito à classe média. Neste sentido, o texto é um debate sobre o processo de industrialização brasileira pós-1930.
Oliveira parte da crítica do conceito de subdesenvolvimento como um conceito singular que deveria prestar contas da ideia de um capitalismo em "trânsito" enquanto constituído por um setor moderno e um setor atrasado. A crítica de Oliveira é certeira em dois pontos fundamentais: a) na realidade concreta, todo sistema social capitalista, e não apenas o "subdesenvolvido", articula um setor moderno e um setor "atrasado"; b) ao contrário de oposição, o que existe entre eles é uma simbiose e uma organicidade, na qual o moderno se alimenta e explora o atrasado. O segundo ponto é nodal, e responsável por possibilitar ao autor uma leitura original e crítica de todo o desenvolvimento socioeconômico brasileiro durante a segunda metade do século XX. Boa parte do texto, inclusive, irá se dedicar precisamente a mostrar as formas concretas pelas quais a exploração do setor atra-sado explica e mantém, em grande medida, o dinamismo do setor econômico moderno brasileiro.
Mas Oliveira também avança em relação à questão que mais nos interessa aqui. É que o debate sobre o "subdesenvolvimento" passou a ser percebido como uma questão de relações internacionais, uma oposição entre nações e de suas respectivas relações de troca. Nessa forma de se perceber as coisas, são as lutas internas de classe à cada sociedade que são secundarizadas, criando a interessante questão posta por Oliveira: são as relações internas ou externas as mais importantes? O modelo anterior cepalino podia apenas perceber contradições entre nações como se de fato pudessem existir "interesses nacionais globais". Esse pressuposto, inclusive, contaminou grande parte do debate da época, criando construções que hoje nos parecem ingênuas, como a aposta em uma suposta "burguesia nacional brasileira" que pudesse ser o suporte dos interesses maiores de toda a nação.
Oliveira nota com muita perspicácia que a dominância dessas ideias impossibilitou a efetiva construção de uma "teoria do capitalismo no Brasil". Meu ponto de discordância com Oliveira é o de que é impossível se construir uma teoria crítica do capitalismo brasileiro dentro do contexto de referência teórico do economicismo, seja ele liberal, seja marxista como o de Oliveira. E essa limitação é perceptível em seu próprio texto, como veremos adiante. Por enquanto vamos continuar examinando a obra no contexto de seu próprio quadro de referências.
A principal característica do novo modelo de economia e de sociedade que se instaura no Brasil a partir de 1930 envolve a realização do excedente econômico não mais prioritariamente a partir do mercado externo - como era o caso até 1930 -, mas, crescentemente, pelo próprio mercado interno. Essa transformação socioeconômica de grandes proporções muda toda a lógica da dinâmica social e enseja uma nova hierarquia política e econômica.
A tese de Oliveira implica, no contexto da interpretação deste período e da discussão de seu sentido histórico, um embate contra praticamente todas as teses mais consagradas acerca deste período conhecido como "populista". A interpretação dominante enfatizava ganhos crescentes também para os trabalhadores urbanos, com a Revolução de 1964 tendo sido levada a cabo pelo esgotamento deste modelo inclusivo. Para Oliveira, ao contrário, a regulamentação das leis do trabalho criando um denominador comum para todas as categorias de trabalhadores - evitando setores de trabalhadores privilegiados com capacidade de barganha em relação ao capital - garantiu o processo de acumulação ao invés de prejudicá-lo durante todo o período "populista". De resto, acontece massiva transferência de outros setores para a empresa industrial. Muito especialmente a agricultura para o mercado interno deveria suprir as necessidades das massas urbanas. Ainda que não se exproprie a propriedade rural, expropria-se, no entanto, seu excedente e transfere-se para o novo setor dinâmico da economia. Os baixos preços da reprodução da mão de obra urbana são conseguidos precisamente por meio do baixo custo dos alimentos e por certa cultura de subsistência urbana. Os baixos salários dos trabalhadores aliados à produtividade industrial deram enorme reforço à acumulação industrial entre os anos de 1930 e 1970, período de maior crescimento da economia brasileira. É esta combinação de baixos salários e alta produtividade pela importação de tecnologia de ponta materializada em meios de produção que está na base do tipo de capitalismo que se instaura no Brasil com seu padrão altamente concentrador

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